Onde o vagabundo tem, sim, vez!

“Na ginga, a bola de pé em pé (olé)
explode em delírio a multidão (é gol, é gol!),
de Três Corações [ou seria, também, de Bauru?] vem o Rei Pelé,
dando show, é campeão!”

Chega a não ser lá uma novidade as alusões que sambas-enredo de escolas de samba – como é o caso dos versos que abrem esse texto, que empurraram a Barroca Zona Sul no carnaval paulistano de 2003 sob as bençãos do Rei, o maior de todos – fazem com o futebol. As relações entre a maior festa popular do planeta com o esporte mais praticado no mundo, ainda que insistentes, soam menos óbvias como deveriam – pelo menos as providas com alguma profundidade reflexiva e histórica.

Para uns, carnaval é coisa de vagabundo. Pr’outros, futebol e tudo relacionado a ele – inclusive o profissional de Educação Física, como esse escriba já escutou algumas vezes – também. Tomando emprestado algumas prosas de Luiz Augusto Simas, um de nossos grandes historiadores contemporâneos, e sua ‘declaração de pertencimento à malta dos vagabundos’, estamos aqui para afirmar, sem pestanejar, que: sim, esses uns e outros estão certos.

A etimologia da palavra vagabundo, de origem latina, remete ao verbo vagar – que, por sua vez, caracteriza o indivíduo que vagueia, que anda sem destino muito claro. A anteposição ‘vag’ diz respeito ao mover de um ponto ao outro de forma incerta. O prefixo ‘-bundo’ tece sobre aquele/aquela que abunda: está cheio ou cheia de algo.

Vagabundo, portanto, é o fulano/fulana que aparenta rumar no improviso e, certo do que é e o que faz, ri da própria luta. Um/uma errante, pois: o/a dono/dona da ginga que desconcerta o/a outro/outra; que faz o mesmo carnaval do sambódromo na defesa adversária; que é o/a mestre de bateria na beira do campo ou da quadra; que, ao jogar capoeira, sabe muito bem que recuo, também, é golpe; que vence as batalhas hercúleas da vida abusando da elegância e d’alegria e abrindo mão da agressividade.

Que fique claro: pode até soar romantização tola, o que há aí, acima. Mas essa ode ao vagabundo tem uma intenção: o de revisitar a identidade do/da brasileiro/brasileira, que o passar dos séculos racionalistas pintaram de pejorativo. A vagabundagem é um elemento fulcral dessa amarração entre futebol e samba – nessas bandas, cunhados, por quem costuma estar à margem dos padrões coloniais.

Ela reside no inesperado, afinal: no drible tirado da cartola no jogo do Driblinho, na excentricidade do passe na meia cancha ou no passo do/da passista na meia avenida. É, como escreveu Simas, a alcunha do ‘ser em disponibilidade’: aberto/aberta à experiência – aquela que toca, afeta e ressignifica a si e ao/à próximo/próxima. E que o faz gingando.

Ao fim a ao cabo, a ginga, filha do carnaval, neta do futebol e do samba, é prova cabal de que mandamos diariamente às favas – e há uns cinco séculos – as tentativas de captura (a velha, a moderna e a pós-moderna) de nossa natureza transgressora. A fim de suavizar nossa vagabundagem, tentam nos enfiar goela abaixo que adotar o estilo de vida wanderlust (nada mais do que o vagabundo do norte) é o elixir da boa vida, tal qual o jogo de posição ou rondo, ainda que já façamos (quase) o mesmo – e melhor.

Resiste quem pode.