O DNA do Futebol Brasileiro

Conversar sobre o DNA do Futebol Brasileiro passa pela tentativa, não recente, de identificar aquilo que é essencial para o nosso jeito de jogar, de ser, de viver o futebol e reviver a nossa única e singular história, com conquistas em Copas do Mundo, de fracassos e principalmente pelas lembranças dos encantamentos promovidos por jogadores e jogadoras, que representam nosso povo, suas virtudes, suas disputas e conquistas diárias, mostradas no teatro das emoções ao céu aberto e de tapete verde.

Nesta busca, necessitamos compreender o que trazemos em nossa “estrutura genotípica futebolística”, sendo para isso necessário nos aproximarmos das noções de cromossomos, DNA, genes e, em última instância dos nucleotídeos A, T, C e G. São os nucleotídeos Adenina, Timina, Citosina e Guanina que se combinam em pares de base e oferecem a estrutura elementar do genoma humano.

Imagem/Reprodução: Instagram (@pele)

E assim, ao meu modo de entender, Pelé é síntese do nosso futebol e carrega consigo os nucleotídeos e as bases do DNA futebolístico nacional. Da mesma forma que o DNA está presente em todas as milhões de nossas células humanas, Pelé está presente em todos os lugares do futebol e da vida do brasileiro; como aqui, no edifício da sede da Federação Paulista, que leva seu nome. E agora, mais do que nunca, inclusive nos dicionários, com o verbete que significa algo insuperável.

Sendo assim, as bases do DNA do Futebol Brasileiro podem ser descritas também em outras quatro letras: PELE. Estas nos permitem dizer que nosso futebol é composto pelo P de Pluralidade, E de Eternidade, L de Liberdade e o E de Excelência.

DNA do Futebol Brasileiro: P – E – L – E

Por Pluralidade, entendemos que o futebol brasileiro é capaz de ter jogadores e jogadoras de distintas características, os quais jogam e nos encantam de diferentes maneiras. 

Já na Eternidade, nosso futebol, ou melhor, nosso povo, é herança da eterna líder Njinga Mbande ou simplesmente Jinga, que nos ensinou como resistir “gingando” nas adversidades impostas por aqueles que desejavam eternizar a escravidão do povo preto africano. 

Imagem/Reprodução: Instagram (@pele)

Sem dúvidas, foi a eternidade do pensamento libertário de nossa ancestral, que por meio do povo negro, o Brasil se fez e faz do futebol coisa de PELÉ. Pois, foi o povo preto brasileiro que reinventou o futebol e sua forma de aprender, praticar e jogar, tornando o jogador e a jogadora o centro desta ressignificação cultural. Assim, como declama Jorge Aragão:

"[...] podemos sorrir, nada mais nos impede, não dá fugir desta coisa de pele, vivida por nós, desatando os nós, sabemos que agora, nem tudo que é bom vem de fora [...]".

Fazer parte desta história, por ser brasileiro, já é motivo de muito orgulho e, ter a oportunidade de ter nascido e viver na mesma cidade do maior futebolista de todos os tempos, é poder assistir ao filme da história em tempo real. Pois, como já escrevi por algum lugar, o Edison é tricordiano. Mas o Pelé, o nosso Pelé Eterno, este é bauruense!

Imagem/Reprodução: Instagram (@pele)

Haja visto, como ele próprio diz, foi na “esquina sagrada”, na intersecção da Rua Sete de Setembro com a Rubens Arruda em Bauru, que ele aprendeu e se tornou o nosso rei. Neste momento, recordo-me uma cantiga infantil e a parafraseio: "se esta rua, se esta rua fosse minha, eu mandava, eu mandava ladrilhar, com coroas para o rei eternizar...".

Mas, podemos eternizar o nosso DNA quando buscamos compreender a pergunta que nos traz aqui. O que tem estas ruas sagradas pelo Brasil adentro, que são capazes de possibilitar a perpetuação do DNA do Futebol Brasileiro?

Futebol de rua: Liberdade e Excelência

Para responder a nossa questão existencial, é aqui de “casa”, ou melhor, "das nossas ruas", que temos pensadores do nosso futebol que compreenderam, concretizaram e teorizaram o nosso jeito (não apenas de jogar)! Mas decifraram o nosso dom de aprender, ensinar e treinar futebol, como nenhum outro lugar na história do futebol mundial conseguiu fazer. Eles nos apresentam as bases da Liberdade e da Excelência de nosso DNA.

O professor João Batista Freire que “inicia este jogo” nos trazendo a hipótese da Pedagogia da Rua e o professor Alcides José Scaglia que a consolida como a Pedagogia do Jogo, permitem-nos compreender primeiramente que rua não se limita ao espaço entre duas calçadas e foi onde o povo brasileiro desenvolveu a sua cultura de aprendizagem. 

Imagem/Reprodução: Unsplash (David Clarke)

Foi dentro do “quilombo Unicamp” que eles descortinaram o entendimento de jogo, como uma instância subjetiva, ou melhor, como o próprio professor João Batista Freire nos diz, no livro "O jogo: entre o riso e o choro", o jogo é tudo aquilo que minha percepção disse que é jogo. E, para além disso, trazer a concepção de jogo como espaço lúdico, o qual se define como local para a liberdade de interpretação, manifestação e ação.

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A partir destes pressupostos, eles construíram uma possibilidade de trazer da rua o seu Ambiente de Jogo (Liberdade), com o desafio, o desequilíbrio, a imprevisibilidade e a representação, que em contato com o Ambiente de Ensino (Excelência), com os objetivos, sistematizações, conteúdos e métodos, permite criar o local do aprendizado significativo.

Diante deste referencial, na Ginga Futebol com Alegria construímos uma proposta pedagógica destinada a crianças de 6 a 13 anos, para ensinar e treinar futebol sustentada na Pedagogia do Jogo e que permite o resgate dos jogos e brincadeiras com a bola nos pés da cultura infantil brasileira.

Imagem/Reprodução: Unsplash (Maninder Sidhu)

No entanto, a perpetuação do DNA do Futebol Brasileiro necessita de pessoas que sejam capazes de transmitir este “jeito” para as gerações vindouras, ou seja, treinadores/treinadoras, professores/professoras e mestres/mestras que sejam formados para serem os guardiões e guardiães de nossa essência, a qual durante a história foram manifestadas no trabalho de diversos profissionais.

Quem passa adiante o DNA do Futebol Brasileiro?

Nesta direção, o professor Wilton Carlos de Santana, o guardião do nosso futsal, também filho do “quilombo Unicamp”, em seu sensacional livro "Pedagogia do Futsal – Jogar para Aprender" nos ensina que na perspectiva ecológica, o/a professor(a)/treinador(a) assume um papel de desenhista de cenários, que possibilitam a aprendizagem do essencial, do nosso DNA.

Eu diria que para além de desenhista de cenários, o professor(a)/treinador(a) brasileiro(a) é um mestre(a) de bateria! Pois é aquele(a) que ensina, junta e dá harmonia aos ritmistas, sabendo exatamente onde cada um pode se sentir mais feliz e encantar multidões.

Imagem/Reprodução: Unsplash (Patrick Schneider)

Assim como pude ter o privilégio de na minha formação contar com mestres, como o prof. Alcides e o próprio prof. Wilton, eu tive a oportunidade de ter um professor mestre de bateria, que marcou minha vida em dois momentos, ainda quando garoto e depois como estudante de Educação Física, quando o professor João Gualberto Pires me fez viver o futebol pela perspectiva das crianças, criando cenários, ou melhor, a “avenida” adaptada aos pequenos. 

Há mais de 40 anos o professor Gualberto, sob a perspectiva da filosofia do “só perde quem não participa” propunha um jeito brasileiro para se ensinar futebol, com adaptação do campo às necessidades das crianças. 

Não é mera coincidência que o professor Gualberto tinha como referência, e sempre nos lembrava de um outro mestre em suas aulas, o “Mestre Telê”, que muitos brasileiros se recordam pelas equipes encantadoras, como o Brasil de 1982. Eu me recordo do super São Paulo dos anos 1990, que encantou o mundo vencendo os gigantes treinados pelos maestros Johan Cruyff, Arrigo Sacchi e Fábio Capello.

Imagem/Reprodução: Unsplash (Syed Ali)

Mas, sem dúvidas, foi Mário Jorge Lobo Zagallo, o homem que eternizou para sempre o DNA dos nossos treinadores mestres de bateria. Foi ele quem ensinou ao mundo que os melhores ritmistas devem estar na avenida e, sem dúvidas, ele brindou o mundo com a melhor bateria da história, composta por nossos melhores artistas Gerson, Rivelino, Jairzinho, Tostão e Pelé!

O DNA do Futebol Brasileiro nas mulheres

E, por falar em artista, não podemos deixar de lembrar a nossa maior artista, a rainha Marta, que de banjo nas mãos, evocando Alcione e, cantando em um pedido emocionado para que não deixemos o samba morrer, nos faz acreditar que ela é a “mutação” dos genes da nossa ancestral Jinga, que em cinco letras traz as bases da Justiça, Inteligência, Nobreza, Guerreira e Audácia para o nosso futebol e, que em Marta, manifestam-se com a Magia, Arte, Resiliência, Talento e Alegria.

Imagem/Reprodução: Instagram (@martasilva10)

Rainha, tenha certeza, que na Ginga Futebol com Alegria iremos diariamente trabalhar para não deixar o samba morrer! Pois desejo que as milhões de crianças deste Brasil e, em especial que a minha pequena Valentina, aprenda, admire e que ela tenha o que é nosso. Com as bases da Valentia, Audácia, Liberdade, Excelência, Nobreza, Talento, Inteligência, Naturalidade e Alegria que compõe o seu DNA, ela inspirou a criação da Jinga Waswina, nossa representante, que leva consigo a herança de Njinga Mbande (Jinga) e de você, em especial, a Alegria do nosso futebol. 

Pois como canta Gonzaguinha "eu confio na moça e na moça eu ponho a força da fé... Pois, somos nós que fazemos a vida, como der, puder e quiser... É a vida, é bonita e é bonita!!!".

Carlos Rogério Thiengo. Brasileiro, conterrâneo de Pelé, goleiro e diretor da Ginga Futebol com Alegria.

Registro da palestra ministrada na Federação Paulista de Futebol no Seminário de Iniciação ao esporte – Resgatando a Essência do Futebol Brasileiro – 28.04.2023