Fui goleiro, agora me aposentei

Por Alcides Scaglia, professor livre-docente da Faculdade de Ciências Aplicadas da UNICAMP, docente do curso de Ciências do Esporte e pesquisador do LEPE (Laboratório de Estudos em Pedagogia do Esporte), ex-goleiro profissional.


Hoje posso dizer que fui um goleiro, e um bom goleiro, diga-se de passagem. Mas, parei de jogar há cerca de um ano.

Esta afirmação, para quem é mais próximo, pode soar bem estranha, pois a última vez que coloquei um par de luvas foi em 1996. Sendo assim, as contas não fecham…

Deixe-me explicar, conscientemente e realisticamente, minha última participação como goleiro, defendendo o Unidos-FC em nossa terceira vitoriosa final seguida, foi em 1996. Ali, sagramos tricampeões, do competitivo campeonato amador da cidade de Rio Claro.

Lembro-me como se fosse ontem…

Meu bonito e imponente uniforme, minhas luvas (como são bonitas as luvas para goleiros, elas sempre me encantaram!) e minhas chuteiras com travas de alumínio. A torcida, metade nos aplaudia e a outra metade, obviamente, não. E, principalmente, as importantes e decisivas defesas que realizei, com meus 1,72 metros de altura, enfrentando literais gigantes.

Sim, fui um goleiro baixinho para os parâmetros irracionais dos últimos tempos. Exatamente por este motivo, posso afirmar que desempenhei um excelente papel como defensor da meta.

Fui titular e capitão da equipe em quase todas as categorias que joguei, até o meu primeiro ano como juniores, na inesquecível Associação Atlética Ponte Preta. E, mesmo quando não fui o goleiro principal, era uma grande “sombra” ao titular.

Isso mesmo, com minha pequena estatura proporcionava incômoda sombra aos gigantes que estavam à minha frente. Pois, como afirma Fernando Pessoa, a partir de Alberto Caeiro: “eu sou do tamanho que me vejo e não do tamanho da minha estatura”.

Estatura. Ah, estatura! O que representa dez centímetros de estatura, comparada a trinta centímetros de impulsão? O que significa, racionalmente, a proporção entre envergadura, agilidade, posicionamento e inteligência tática?

Perguntas simples de serem respondidas, porém insignificantes quando a resposta não é parametrizada pela razão, mas sim, pela representação, ou melhor, pela aparência. Haja visto, amparando-se na máxima burguesa sobre manutenção de poder: mais importante do que ser é parecer ser!



Não basta ser honesto, é preciso parecer honesto!



Qual absurdo isto é! Quem parece que tem dinheiro, mas na verdade só têm dívidas. Contudo, reside na Casa Grande e, tem crédito com os amigos, é mais poderoso do que aquele trabalhador, que não deve. Mas acabou de se emancipar e não parece rico…

Não basta ser um bom goleiro, ser o melhor nos treinos e jogo, encantar a todos com suas defesas, superar a todos com dedicação, empenho, compromisso, responsabilidade, engajamento… O goleiro baixo não parece ser goleiro aos olhos do senso comum, que pensa a partir da representação e não da razão.

O goleiro baixo não o é, e nunca poderá sê-lo.

Eu não sou ninguém na fila do pão, ou melhor, na escalação. Mas, seguindo as aparências, o mundo não mais verá as maravilhosas atuações de goleiros artistas, como Dasaev (1,86 m), Higuita (1,76 m), Lev Yashin (1,89 m), N’Komo (1,83 m), Ubaldo Fillol (1,81m), Waldir Peres (1,81 m), Gordon Banks (1,83 m), Preud’homme (1,83 m), Schumacher (1,86 m)… E o que falar do tetra campeão Claudio Taffarel, com seus 1,80 metros de estatura?

Obviamente, o futebol vive muito bem sem a minha presença. Mas o inverso não necessariamente é verdadeiro. Confesso que demorou muito para chegar a minha aposentadoria. Como afirmei, conscientemente parei de jogar em dezembro de 1996, mas no meu subconsciente, “pendurei as luvas” apenas em 2023.


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Nesse ínterim, eram recorrentes os sonhos em que eu voltava a morar embaixo das arquibancadas do Moisés Lucarelli, ou ainda, voltava a vestir a camisa profissional do Velo Clube de Rio Claro ou jogava nos estádios do interior paulista, como na Rua Javari, no Canindé, no Brinco de Ouro, na Fonte Luminosa, no antigo Parque Antártica, na Vila Belmiro, no Parque São Jorge…

Acredito ser muita vontade, desejo, dedicação, investimento, para o subconsciente processar e apaziguar (com certeza, nunca apagar!), que justifiquem a demora no processamento da solicitação de aposentadoria.

O interessante é que voltei muitas vezes a alguns desses locais, mas como palestrante, explicando as teorias, projetos pedagógicos e pesquisas que estou desenvolvendo com o futebol nos últimos 30 anos.
Talvez, a substituição recorrente da mesma motivação que eu tinha de jogar em um belo estádio - com uma rede “caixote” no gol-, por um belo auditório - com ótima acústica -, tenha ajudado a gerar novas afecções no meu subconsciente, equivalentes as solicitações regulares e costumeiras que antecedem e embasam as solicitações de aposentadoria compulsória.

Mas, o veredito final, que me concedeu em definitivo a compulsória, veio também na forma de sonho, por sinal muito revelador! Neste, eu era assessor de um projeto de futebol liderado pelo Johan Cruyff, em um espetacular centro de treinamento, muito tecnológico na Holanda. Lembro-me de expor minhas ideias e conversar muito com ele e sua equipe, e no final estávamos aplicando a Pedagogia do Jogo, nos treinos com jovens jogadores!

Nunca mais voltei a sonhar que era goleiro, ou mesmo que tinha voltado a morar no alojamento da Ponte Preta. Posso realmente afirmar: estou aposentado, deixei de ser goleiro no ano passado.