O treinador brasileiro como mestre de bateria

No dia 14 de janeiro comemora-se o dia do treinador de futebol no Brasil. Devido ao relevo que a função assumiu nos últimos anos, as discussões ao redor de sua atuação, responsabilidades e, especialmente, sobre a sua identidade se fazem muito presentes. Sendo uma destas questões: quais são as características identitárias do treinador de futebol brasileiro?

Após alguns anos atuando próximo a muitos destes profissionais, investigando e participando de sua formação, observei particularidades e similaridades dos treinadores com aqueles que lideram o “coração” das escolas de samba e contribuem significativamente com um dos maiores espetáculos da Terra, me refiro aos nossos mestres de bateira!

Não coincidentemente, as nossas duas paixões/amores se entrelaçam e coexistem, pois ambas compartilham a mesma matriz cultural. Assim como ensina o professor João Batista Freire, samba e futebol são construções da rua brasileira — a rua como espaço para além das duas calçadas. Uma(s) rua(s) frequentada prioritariamente e especialmente por pretos/as e mestiços, mas que acolheu a TODAS AS PESSOAS que fazem parte deste continental Brasil e permitiu o aprendizado, criação, síntese, (re)construção e ensino das nossas artes, as quais encantam milhões de pessoas mundo afora.

Dentro deste ambiente de aprendizagem, também aprendemos a liderar! Seja uma equipe de futebol, durante os 90 minutos em uma final de Copa do Mundo ou uma bateria, que precisa ser perfeita e se fazer presente durante os 75 minutos da travessia na Marquês de Sapucaí.

Nestes dois espaços, que ainda são terrenos predominantes de homens, mas que certamente, em breve, também serão ocupados por muitas mulheres, vimos ao longo do tempo emanar lideranças que pertencem àquela comunidade e que caminham entre os ritmistas, pois um dia foram um deles. Treinadores que ministram treino de dentro do campo, como se estivessem jogando, pois um dia jogaram também, ou melhor, continuam jogando. Mas agora eles não estão tocando, apenas vivendo o jogo próprio deles!

Nossos legítimos treinadores, assim como nossos mestres de baterias, permitem que cada ritmista/jogador pegue no instrumento/bola de sua forma, do jeito que melhor lhe apetece. Tal fato me faz lembrar de Marcel Mauss*, que conceitua a técnica corporal como construção cultural com sua eficácia simbólica. Este conceito nos permite compreender que o uso do corpo no futebol e samba nacional é uma manifestação artística! Pois, ainda hoje, depois de tanto tempo, nenhum terráqueo, me arriscaria a dizer nenhum extraterrestre, esperaria da camisa amarela ou do recuo da bateria nada menos que um verdadeiro espetáculo!

As semelhanças entre o treinador brasileiro e o mestre de bateria

Sem margens de dúvidas, tanto os mestres como os treinadores buscam a harmonia dos seus componentes, de forma que se integrem coletivamente na arte de encantar! Mas, como ninguém no mundo é capaz, aqui construímos as nossas equipes a partir das características dos nossos jogadores e, a partir deles, de onde eles se sentem mais à vontade e se conectam melhor, os nossos mestres sabedores de que o jogo é dos jogadores compreendem que o coletivo é para potencializar arte individual, ou seja, é imperativo devolver o jogo ao jogador, como diria o mestre Alcides!

Além disso, nossos treinadores sabem que cada escola de samba ou ainda cada bateria tem as suas características, por exemplo, temos aquela que de tão potente é denominada de Furiosa e, no mesmo campeonato, temos aquela que imortalizou a paradinha, que nos faz lembrar a cadência do jogo brasileiro, ou seja, cada equipe do cenário nacional possui uma cultura de jogo, dentro de uma diversidade e pluralidade, onde até mesmo o carnaval é distinto em diferentes locais. Mas nunca deixa de ser lúdico, nunca deixa de ser jogo, nunca deixa de ser carnaval ou futebol!

Apesar de líderes da arte, que sentem a cada batida do surdo o sangue correr nas veias, os mestres de bateria também sobem no instrumento para se fazer presente (aqui menciono o vídeo que me inspirou a este texto), mestre Marcão liderando o “treino” da poderosa Furiosa) mesmo quando os seus jogadores não são seus “filhos legítimos” e necessitam de auxílio para ir mais longe, como fez Renê Simões com a Jamaica em 1998, ou até mesmo cerrar os punhos e lutar como Luiz Felipe Scolari à frente da seleção portuguesa!

Nossos mestres de bateria

Por falar em Luiz Felipe Scolari, cabe aqui a menção que somos mais de 20 mestres de bateria. Ops… Treinadores, campeões mundiais ou olímpicos com a seleção brasileira masculina principal, olímpica, de base e clubes, sendo eles: Luiz Felipe Scolari, Carlos Alberto Parreira, Aymoré Moreira, Vicente Feola, Rogério Micale, André Jardine, Ney Franco, Marcos Paquetá, Julio César Leal, Gilson Nunes, Jair Pereira, Guilherme Dalla Déa, Tite, Abel Braga, Paulo Autuori, Oswaldo de Oliveira, Telê Santana, Valdir Espinosa, Paulo César Capergiani e Lula. Além de outros que fazem parte da história do futebol brasileiro: João Saldanha, Wanderley Luxemburgo, Carlos Alberto Silva, Muricy Ramalho, Claúdio Coutinho, Rubens Minelli, Enio Andrade, Vadão, entre outros.

Também há aqueles com os quais me identifico, como Roger Machado, Cristóvão Borges e Cilinho. E aqueles e aquelas que deposito a minha esperança, expressa na voz de Alcione, de não deixar o samba morrer, como: Mário Jorge, Jaqueane Corrêa, Paulo Victor, Rosana Augusto, Rafael Stucchi, Camila Orlando, Eduardo Barros, Tatielli Silveira, Arthur Elias, Jéssica Lima, Bernardo Franco, Daniela Alves, Eduardo Oliveira, Roberta Batista, Marquinhos Santos, Fernanda Grande, Rodrigo Leitão, Andréia Rosa, Fábio Mathias, Anne Barros, Jonas Urias, Thaissan Passos, entre tantos outros e outras que representam uma enorme geração de jovens mestres e mestras, que atuam em diversas baterias do nosso futebol.

Termino na Apoteose do Samba, com aquele que é dono do apito de ouro e lidera todos os citados, o qual considero o “maior mestre de baterias” do Brasil e, que personifica a identidade do nosso treinador brasileiro, Mário Jorge Lobo Zagallo.

Ainda como jogador, Zagallo mostrou toda sua inteligência e versatilidade ao mudar de posição e criar um sistema tático. Um homem que para além da participação em sete copas com a seleção brasileira, das cinco finais disputadas, da conquista do tetracampeonato em 3 funções distintas, foi capaz de colocar os nossos melhores ritmistas juntos, os cinco “camisas dez” e, assim, construir a maior equipe de todos os tempos!

LEIA TAMBÉM:

Nas últimas frases deste samba enredo, empresto de Jorge Aragão, que em Coisa de Pele canta uma expressão capaz ilustrar o papel dos/as nossos mestres de bateria na construção de nossa arte, (…) resiste quem pode à força dos nossos pagodes!!!

  • MAUSS, Marcel. As técnicas do corpo. In: MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003. Cap. 6. p. 399-422. Introdução Claude Lévi-Strauss.

PS: Eu havia escrito a última versão deste texto no dia 04/01/2024. Enviei-o para a comunicação de forma que fosse publicado, à véspera do dia do treinador de futebol. Aí, na manhã do dia 06/01, leio a notícia de que o maior “mestre de baterias” de todos os tempos, havia ido se encontrar com seus ritmistas de outrora. Senti-me triste, não gostaria que fosse um texto póstumo. Assim, faço como Luiz Américo, em Camisa 10, desculpe seo Zagallo… A todos os familiares os meus sentimentos e, a você mestre, muito obrigado!

Carlos Rogério Thiengo, Diretor da Ginga Futebol