ESTA ESQUINA É NOSSA!

Se minha memória não me traiu, foi em 1993, com os meus 11 anos de idade, que participei pela primeira vez de uma competição municipal de futebol, a Copa Dondinho.

Deste momento, me recordo das partidas que ainda me arriscava como lateral esquerdo e da abertura da competição, realizada na praça Rui Barbosa, no centro da cidade de Bauru-SP. Foi durante o evento que descobri que Dondinho era pai do Pelé, e que o Maior de Todos os Tempos havia residido na mesma cidade onde eu vivia.

Já com a certeza da fidelidade da minha memória, especialmente pelo casamento proporcionado pela memória afetiva, em 2012 fui a Ouro Preto-MG e, de lá, “nunca mais voltei”! Sem dúvidas, de todos os lugares que já visitei, foi o mais impactante! Pois foi lá que me reconheci como um homem preto; ao sentir, ver e ouvir a importância dos meus ancestrais para nosso país, o que me faz acreditar que todo brasileiro e brasileira deveria, ao menos uma vez na vida, visitar a antiga capital do Brasil.

Diferente do passado exposto em cada ladeira e em cada parede da cidade mineira, na minha querida Bauru-SP, sentia a riqueza imaterial lentamente se apagar, junto com a memória daquelas pessoas que foram testemunhas oculares da metamorfose real. E, mesmo com esforço de pessoas como o jornalista e escritor Luciano Dias Pires e os registros trazidos pela incrível obra de Luiz Carlos de Cordeiro, intitulada De Edson a Pelé: a infância do rei em Bauru, precisei de décadas para entender a imensidão histórica que me rodeava. Haja vista que, durante a minha infância e adolescência, pouquíssimas vezes escutei diálogos ou participei de conversas sobre a vida de Pelé na cidade. A sensação que me atravessava era da trivialidade da sua trajetória, como algo que poderia ocorrer novamente e a qualquer instante. Mas que, de fato, jamais se repetirá.

Após alguns anos, me tornei um profissional do campo esportivo e, durante minha formação, não houve menção alguma daqueles fatos que ocorreram neste pedaço de chão. Ainda durante a minha formação acadêmica, em nível de mestrado, estudei o sociólogo Nobert Elias, que entre algumas das suas obras que tive acesso, me encantei com o livro intitulado Mozart: a sociologia de um gênio. Nesta publicação, Elias nos brinda com a aplicação da teoria configuracional e como esta pode nos ajudar a compreender como as pessoas extraordinárias são formadas, a partir de contextos e tempos históricos singulares. Foi neste período que percebi que algo especial ocorreu em Bauru entre 1945 e 1956.

Entretanto, tal excepcionalidade dos fatos contrastam com o silêncio histórico, rompido apenas pela arte “coincidentemente” exposta na mais internacional “rua” da cidade, a Avenida Nações Unidas. Estas pinturas apresentam aos jovens e recordam as/os mais experientes bauruenses, da grandeza daquele que nos inseriu definitivamente nos caminhos da excelência internacional.

Por falar em caminhos, foi em uma obra publicada do outro lado do Atlântico que tomei consciência da importância de um lugar na cidade, que me permito denominar Esquina Sagrada, que nas palavras do próprio Rei podemos conferir a sua importância.

“Os meus primeiros jogos tiveram lugar no prestigiado estádio da rua Rubens Arruda: traves feitas com sapatos velhos, em cada uma das extremidades - uma onde a rua terminava em um beco sem saída e a outra onde se cruzava com a Sete de Setembro; as linhas laterais eram mais ou menos onde as casas começavam da cada lado. Mas para mim é como se fosse o Maracanã, e foi o local onde comecei a desenvolver as minhas aptidões” (Pelé em excerto do livro Futebol da Rua, um beco com saída).

Já que estou me remetendo à consciência, esta que foi e está sendo vagarosamente construída; ao longo deste processo também se tornou implacável. Pois passou a direcionar meus olhares para as marcas da minha trajetória, na qual vivi, ouvi e senti na e pela pele o valor triplicado pelos gols que sofri, ainda menino, quando optei por atuar como goleiro. Fato que me levou a perguntar a homens vitoriosos, que tiveram Com a Nação nas Mãos, os motivos pelos quais no país do futebol poucos eram os goleiros pretos que atuavam nas principais equipes e na seleção nacional. Foi ali, na iniciação científica, que compreendi porque mesmo quando estava de costas para minha ancestralidade, me encantava com as saídas de gol em bolas aéreas pelo excepcional goleiro vascaíno Helton e admirava o espetacular Dida, que possibilitou após 40 anos, termos um homem negro dentro do gol da seleção, em uma partida de Copa do Mundo

A camisa 1 e a área penal foram um dos objetos e espaços impedidos a centenas de brasileiros como eu, que desde o Maracanazo na Copa do Mundo de 1950, a mesma que o pequeno Edson, já residente nas proximidades da Esquina Sagrada, prometeu ganhar e cumpriu triplicadamente, ao seu pai Dondinho; penalizou um dos maiores goleiros brasileiros, Moacir Barbosa.

Aquela Esquina, que ainda é apenas mais uma esquina, mas que na verdade é um verdadeiro portal para a viagem no tempo, seja para o passado, seja para o futuro - pois o tempo não é linear – grita silenciada pelo seu asfalto, os ruídos dos pequenos que juntos, transformaram Edson em Pelé!

Outros pedaços do solo bauruense também foram pistas de decolagem de pessoas geniais, que até para o espaço já foram. Mas, sem dúvidas, nenhum bauruense viajou para eternidade como Pelé! Nenhuma pessoa conseguiu realizar feitos tão surpreendentes, descritos e registrados fartamente na história recente, como fazia dentro de campo ao tornar o sagrado em humano, transformando por apenas um acento, a palavra pele, em verbete de dicionário com significado de excelência.

Todas as vezes que piso na Esquina Sagrada, me lembro da cantiga infantil: se essa rua fosse minha... E, logo penso: se esta Esquina fosse minha, tenham certeza que iria mandar ladrilhar, com pedras e brilhantes para o Rei eternizar...

Mas, meu desejo não me confere o direito de ter essa rua, pois esta rua, ou melhor, esta ESQUINA, É NOSSA! Esta Esquina é um local simbólico, o marco dos saberes do futebol brasileiro, pois se foi o nosso futebol de rua, se foi a nossa pedagogia da rua que nos catapultou para a excelência da maior prática corporal da história da humanidade, é nesta Esquina, na Nossa Esquina, que se fez o Maior de Todos os Tempos! 

Carlos Rogério Thiengo, Diretor da Ginga Futebol

Referências

CORDEIRO, L. C. De Edson a Pelé: a infância do rei em Bauru. São Paulo: DBA Artes Gráficas, 1997.

ELIAS, N. Mozart: sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.

GARGANTA, J.; FONSECA, H. Futebol de rua, um beco com saída: jogo espontâneo e prática deliberada. Visões e Contextos. 2008.

THIENGO, C. R.; HUNGER, D. Com a nação nas mãos: a história do treinamento de goleiros no futebol brasileiro. Jundiaí: Paco Editorial, 2014.

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